
Os Estados Unidos acumulam mais de US$ 1,66 trilhão (R$ 9,1 trilhões) em dívidas de automóveis, segundo relatório divulgado em setembro. O montante, recorde histórico, reflete carros cada vez mais caros, financiamentos longos e juros elevados.
A pressão sobre famílias já provoca inadimplência em massa e retomadas de veículos em níveis comparáveis a 2009. Entre 2022 e 2024, as retomadas aumentaram 43%, de acordo com a consultoria Cox Automotive.
Jovens e famílias de classe média engrossam a lista de devedores crônicos. Ao mesmo tempo, órgãos de fiscalização como a Consumer Financial Protection Bureau (CFPB) perderam recursos e influência, o que reduz a capacidade de conter abusos de bancos e concessionárias.
Para analistas, se nada for feito, o descontrole pode virar um gatilho de recessão semelhante à crise de 2008.
Carros caros e dívidas mais longas
O preço médio de um carro novo nos Estados Unidos alcançou US$ 50 mil (R$ 274 mil). Segundo o levantamento, as parcelas mensais típicas giram em torno de US$ 745 (R$ 4 mil), e quase 20% dos compradores assumem prestações acima de US$ 1.000 (R$ 5,4 mil).
Para tornar o valor mensal viável, as financeiras ampliaram os prazos de pagamento.
Quase um em cada cinco contratos assinados em 2025 já tem duração de sete anos, e financiamentos de oito anos — comuns antes da Grande Recessão — voltaram a ser oferecidos.
O relatório ressalta que, embora as parcelas pareçam mais leves, os consumidores acabam pagando muito mais em juros.

A escalada de preços começou durante a pandemia, com a escassez de semicondutores.
Mas, mesmo após a normalização da produção, as montadoras mantiveram estoques reduzidos, estratégia que sustentou margens de lucro mais altas e consolidou veículos em patamares de custo inéditos.
Essa pressão se espalhou para o mercado de usados. Em junho de 2025, o preço médio dos carros seminovos subiu 6,3% em relação ao ano anterior, o que reduziu a margem de manobra das famílias que buscavam alternativas mais baratas.
Inadimplência e retomadas em alta
De acordo com o relatório, a taxa de inadimplência severa — atrasos acima de 90 dias — é a maior desde a pandemia e já se aproxima do que se via antes da crise de 2008.
O impacto não se limita a famílias vulneráveis. Dados do Federal Reserve mostram que consumidores com crédito “regular”, entre 620 e 679 pontos, têm hoje o dobro de risco de atraso em comparação ao período pré-pandemia.
O problema é ainda mais grave entre jovens de 18 a 29 anos, que lideram a transição para a inadimplência crônica.
As retomadas refletem essa realidade. A Cox Automotive estimou que a execução de veículos alcançou em 2024 o nível mais alto desde 2009, após salto de 43% em dois anos.
Esse aumento acompanha relatos de endurecimento nas práticas de cobrança, muitas vezes contestadas pelos próprios consumidores.
Segundo a CFPB, as reclamações formais sobre retomadas cresceram de forma expressiva na última década e bateram recorde em 2025.
O órgão registrou problemas que vão desde a dificuldade de comunicação com os bancos até cobranças adicionais após a perda do veículo.
Fraudes no financiamento e risco sistêmico
Além da pressão econômica, práticas abusivas de concessionárias e bancos agravam a crise.
O relatório cita levantamento em que 80% dos contratos de clientes com crédito acima de 720 pontos tiveram taxas de juros infladas pelos revendedores.
Também são comuns inclusões de produtos adicionais — como garantias estendidas e seguros — sem autorização clara do comprador.
Essas distorções atingem de forma desigual diferentes grupos. O documento aponta que consumidores negros, hispânicos e indígenas frequentemente pagam valores mais altos ou enfrentam barreiras para cancelar serviços desnecessários.
Em 2023, a Toyota Motor Credit foi multada em US$ 60 milhões (R$ 328 milhões) por dificultar o reembolso de garantias indevidas.
Apesar da gravidade, a fiscalização enfraqueceu. A Federal Trade Commission (FTC) e a CFPB reduziram a atuação no setor, e o Congresso aprovou cortes de recursos da CFPB justamente em meio ao recorde de reclamações.
Para os autores do relatório, essa omissão deixa consumidores sem proteção diante de um mercado cada vez mais hostil.
O estudo conclui que o risco já não se limita ao indivíduo. Como possuir carro é requisito para estudar, trabalhar e acessar serviços básicos nos Estados Unidos, perder o automóvel significa perder também mobilidade econômica.
Caso a chamada “bolha do carro” se rompa, o efeito em cadeia pode reduzir o consumo das famílias, fragilizar o crédito e empurrar a economia para uma recessão de grandes proporções