Semana passada, alguns jornalistas foram convidados pela Ford para conferir uma novidade que havia sido mostrada um dia antes na Índia, um inédito utilitário compacto global, ou CUV (Compact Utility Vehicle). A surpresa entre as versões aventureiras atende pelo nome de Ka Freestyle e está prevista para chegar ao mercado brasileiro no segundo semestre. Mas surpresa mesmo é ver a marca do oval azul fazer tanto estardalhaço por causa de mais um Ka aventureiro. Sim, ele tem mais características off-road que o acanhado Ka Trail, mas nada além disso.
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Já escrevi aqui nesta coluna, em meados do ano passado, sobre o fenômeno da “SUVização” dos carros de passeio. Uma tendência forte, mas que ainda não rendeu grandes frutos. O primeiro entre as versões aventureiras foi o Honda WR-V, uma variante do Fit que vende mensalmente menos da metade do HR-V, este sim um SUV. Depois foi o Renault Kwid, um subcompacto com forte apelo de preço e alguns elementos de utilitário. Teve um mês espetacular de vendas em setembro (mais de 10 mil unidades), mas depois passou a oscilar em patamar abaixo de 3 mil unidades/mês. Outro exemplo é o Jac T40, que tem limitações de volume por ser importado.
O Ford Ka Freestyle quer pegar carona nesse movimento. Ou melhor: quer revolucionar este segmento com o conceito de CUV. Mas não parece tão convincente como algo além de uma versão aventureira. Para começar, a Ford não aprendeu com as lições que teve em casa com o genial caso de sucesso do primeiro EcoSport, de 2002. Ele derivava da plataforma do Fiesta, mas tinha três fatores importantes para seu sucesso: 1- carroceria bem diferente, com as formas retas de um SUV e estepe na tampa traseira; 2- nome próprio, sem nada que remetesse ao Fiesta; 3- alguns meses mais tarde, ganhou uma versão aspiracional, com tração 4x4.
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O tal CUV que a Ford quer emplacar aqui não segue nenhum desses três itens da receita. Por fora, é um Ka com adereços (o protótipo exibido parece diferentão, mas apenas antecipa o facelift de meio de vida que o hatch terá em breve). Mantém o prenome Ka, o que o faz parecer uma mera versão do modelo mais comportado. E não inova na receita de aplicar molduras plásticas, protetores inferiores, barras no teto e suspensão elevada.
Suspensão elevada, diga-se, é uma solução que já foi usada desde a pioneira Fiat Palio Adventure, de 1998 (há 20 anos!), passando pelo VW CrossFox (com direito a estepe na tampa) e uma dezena de versões aventureiras que se espalharam pelas mais diversas marcas. O atual Uno Way tem maior altura em relação ao solo, sem fazer tanto estardalhaço. O mesmo vale para o Renault Stepway, que espertamente abandonou recentemente o Sandero no nome.
Andar no alto
No que o Ka Freestyle difere de todas essas versões aventureiras que conhecemos há 20 anos? Eu não percebi nada de tão novo. E continuo achando que esse segmento já não é tão promissor quanto foi antes da chegada dos verdadeiros SUVs compactos, há 3 anos. Explico: na prática, a montadora quer vender esses hatches com maior margem de lucro, e as versões com esses adereços ajudam a fazer isso. É o preço que se paga pela imagem e pela capacidade um pouco melhor que esses carros têm para enfrentar terrenos levemente acidentados.
O problema é que os preços dessas versões aventureiras começam a encostar perigosamente nos SUVs mais acessíveis, como o Renault Duster e o próprio EcoSport. O Ka Trail 1.5 custa R$ 53 mil. Quanto custará o Ka Freestyle, quase R$ 60 mil? Outro problema: o mercado de usados já começa a receber as primeiras ondas de SUVs como HR-V e Jeep Renegade, entre outros. Pense no sujeito que precisa de um carro mais valente, mas não pode (ou não quer) investir tanto em um SUV 0km: ele vai preferir um SUV seminovo ou um hatch compacto mais altinho e com alguns adereços off-road? O mercado vai dizer, mas eu aposto mais na primeira opção. E não vejo as versões aventureiras para algo além de nichos no mercado atual. Seu reinado durou enquanto não havia muitas opções de SUVs compactos no país.
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Vale lembrar que algumas marcas no Brasil têm projetos reais de produzir um utilitário compacto (CUV soa mal pra burro na nossa língua, convenhamos). A VW já flertou com o Taigun, sobre a base do Up, mas desistiu, e agora volta a estudar um modelo menor que o SUV T-Cross (derivado do Polo) que será lançado este ano. Coisa para 2020. Já a FCA fez as contas para produzir em Betim (MG) um jipinho menor que o Renegade, com o emblema Jeep. O estudo de custos o colocou tão próximo do preço do Renegade que a conta não fechou, e o projeto foi para o freezer – e lá permanece por enquanto. A Ford encontrou sua solução econômica, mas manjadíssima: disfarçar um modelo já existente entre versões aventureiras. Haja marketing para tentar convencer o consumidor de que ele é algo além disso. Talvez mais difícil do que vender um EcoSport por R$ 100 mil, caso da nova versão Storm com tração integral.