Na modernidade líquida -- a sociedade na qual tudo se transforma na velocidade dos fluidos, segundo o filósofo polonês Zygmunt Bauman -- , o trânsito simplesmente não flui. Mas ele também não é sólido, imutável. Por isso, no mundo previsto pelo Google e por parte da indústria do automóvel, as pessoas não mais dirigirão seus carros dentro das megacidades. Eles ficarão estacionados e só serão utilizados para deslocamentos em estradas ou nas cidades menores.
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O Google chegou a imaginar que no lugar deles estaria o Google Car, um veículo elétrico e autônomo posteriormente rebatizado de Waymo, que poderia levar duas pessoas de cada vez. Entretanto, depois de sete anos de testes, os veículos tiveram de ser substituídos e a megaempresa de comunicação desistiu de fabricar carros – os custos de troca e de manutenção e o investimento em uma linha de produção desanimaram os executivos de Mountain View. Assim, o Google preferiu buscar acordos com a indústria do automóvel , dedicando-se apenas às tecnologias de condução autônoma e deixando a fabricação de carros para quem é do ramo.
A Apple preferiu um caminho diferente. Deve entrar no mercado automobilístico já em 2019 com seu iCar, um veículo elétrico com motorista. Por enquanto. Para fazer seu projeto vingar, deve investir de 30 a 40 bilhões de dólares – uma quantia incrível, pois dinheiro é o que não falta na empresa que inventou o iPod, o iPhone e o iPad.
Mas o sonho do carro sem motorista continua. Se ele se concretizar, haverá milhares de carros autônomos nas ruas e as pessoas simplesmente vão chamá-lo por meio de um aplicativo no smartphone (o que já ocorre via Uber, 99, Cabify e EasyTaxi, mas todos com motorista). O veículo que estiver mais perto se deslocará até o passageiro e o transportará ao destino desejado. A previsão do Google é de que não haja congestionamentos, pois os carros serão pequenos e tomarão sempre a rota mais curta e menos congestionada.
Muito diferente do que ocorre hoje em dia. Sozinhos ao volante de seus automóveis rápidos, poluentes e com capacidade para transportar cinco passageiros, milhares de motoristas entediados e nervosos se arrastam pelas ruas, contaminando o ar das cidades, queimando combustível inutilmente e estressando as pessoas.
Bauman foi muito feliz quando cunhou a metáfora modernidade líquida, no ano 2000. Enquanto os sólidos dificilmente mudam sua forma, os líquidos se modificam com facilidade. Basta imaginar uma pedra numa praia para constatar que a água muda de forma e de fluxo, por várias razões, enquanto a pedra leva milhões de anos para se modificar. Devido a essa característica, os sólidos diminuem a significação do tempo -- os anos passam e nada se altera.
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Os líquidos, ao contrário, são totalmente influenciados pelo tempo. Na modernidade líquida, entretanto, a velocidade de movimento dos meios de transporte chegou ao seu “limite natural”. Se na modernidade sólida era preciso se deslocar até um ponto telefônico para passar uma mensagem ou uma ordem, na modernidade líquida o espaço não tem a mínima importância. Com um telefone celular na mão, qualquer pessoa pode falar com outra, em diferentes pontos do mundo, sem estabelecer um local para isso – ambas podem se comunicar em movimento.
Rapidez e preocupações imediatas
A busca incessante do homem na redução do tempo de deslocamentos pautou a indústria no século XX e segue no mesmo ritmo no século XXI. Carros, aviões, navios e motocicletas passaram a ganhar modelos cada vez mais rápidos, reduzindo a importância do espaço-tempo. Uma viagem transatlântica entre Lisboa e Rio de Janeiro, que durava três meses no período das grandes navegações portuguesas, espanholas e inglesas, atualmente é feita em menos de dez horas por grandes aviões a jato.
Entre os anos 1970 e 2000, o Concorde voava de Londres a Nova York em apenas três horas e meia. Nem mesmo o avião supersônico, porém, conseguiu suprimir a relação espaço-tempo na impressão e entrega de um jornal, por exemplo. Para ir de um continente ao outro, uma notícia impressa precisaria no mínimo das citadas três horas e meia. Com a internet, tudo mudou. Os portais aproximaram os continentes, criando uma espécie de Pangeia eletrônica. A globalização passou a ser total e instantânea.
Vender é o que move o mundo na modernidade líquida, na vida líquida, na sociedade de consumidores. Vende-se de tudo: perfumes, alimentos, roupas, carros, caminhões, aviões, mísseis, aparelhos eletrônicos, móveis, arte e até mesmo ideologia, por meio das séries de televisão. Um dos produtos que mais sintetizam a sociedade de consumidores atuais é o automóvel.
Ao contrário da sociedade de produtores, que vigorava na aurora da indústria automobilística, hoje temos uma sociedade de consumidores que não está muito interessada em enxergar a longo prazo. Levando uma vida repleta de movimentos, portanto fluida, líquida, as pessoas têm preocupações imediatas.
Se o casamento está ruim, elas acabam com a relação e buscam outra pessoa que as façam felizes. Se o emprego não está agradando, elas pedem demissão e buscam colocação em outros lugares, sem se preocupar com estabilidade profissional. Se o carro novo não proporciona o mesmo status que o carro do vizinho, troca-se de carro também. Esse estilo de vida sem compromissos com nada é ideal para a indústria automobilística.
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Atualmente, o ciclo de vida do produto automóvel dura de cinco a sete anos, no máximo. Raros são os casos em que a garantia dada pelo fabricante passa de três anos. A indústria automobilística cria novas gerações de seus modelos com uma velocidade que espantaria Henry Ford (criador da linha de produção).
A indústria automotiva na era da velocidade fluida
Para manter o interesse do consumidor de carros sempre em alta, as montadoras têm mais ou menos o mesmo esquema de atuação. Começa com o lançamento de uma nova geração de determinado modelo. Nos primeiros meses, até completar um ano, são lançadas versões mais baratas ou especiais. Isso pode seguir ao longo de dois anos. No terceiro ou quarto ano, o carro passa por um facelift, ou seja, uma pequena mudança estética (novas rodas, um friso diferente, uma pintura inédita) e ganha alguns equipamentos (novo rádio ou sistema de áudio, couro para os bancos etc.).
Feito esse pequeno ajuste, muitas montadoras acrescentam a palavra “Novo” (assim mesmo, com letra maiúscula) antes do nome do carro, jogando a isca para que as ervas daninhas do jardim do consumo finalmente se sensibilizem e coloquem a mão no bolso. Passam mais dois ou três anos e surge uma “nova geração” ; para o modelo reformado, também chamado de “Novo”. Essa novilíngua, como diria George Orwell no livro “1984”, representa um esforço publicitário por parte dos fabricantes. Nessa nova geração, aí sim, o automóvel ganha um redesenho mais profundo e aprimoramentos técnicos, como um motor mais potente, um câmbio novo, suspensões modificadas, etc.
E tudo se repete a cada seis ou sete anos, às vezes menos. Essa rotatividade de lançamentos em torno do mesmo produto -- estrategicamente amarradas com promessas de felicidade nas peças publicitárias -- faz do automóvel um símbolo da modernidade líquida, um emblema da sociedade de consumidores.
Na maioria dos casos, as pessoas simplesmente não precisam de um carro novo. Mas elas se sentem “obrigadas" a trocar de modelo, pois o antigo (que era “novo” até pouquíssimo tempo) passa a se tornar um mico em suas mãos.
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Ele perde muito de seu valor de revenda quando surge uma nova geração – e seu dono perde status, talvez a pior das perdas nessa vida fluida. Como tudo está constantemente em movimento, até mesmo as novas tecnologias parecem percorrer esse rio de invenções, pois muitas vezes a novidade com a qual você “não pode viver sem”, já estava disponível em outro carro do mesmo fabricante, só que mais caro. Assim como a fábrica fordista foi um ícone da modernidade “sólida”, o automóvel é um ícone da modernidade “líquida”.
Compra-se carro sem uma real necessidade (no caso dos colecionadores de supercarros de 1.000 cavalos de potência) e troca-se de automóvel apenas para ficar “na moda”, para estar acompanhando as últimas tendências tecnológicas e estéticas. Toda a atividade humana passou a se desenvolver em torno do consumo.
O que se come, o que se veste, como se viaja, para onde se viaja, o que se vê, o que se fala, como se fala, o que se bebe, onde se trata, por que se trata, com quem se trata, onde se trabalha, o que se faz, o que se lê, o que se ouve, o que se pensa... tudo está absolutamente ligado ao status que a pessoa tem ou transmite para a sociedade. A combinação do consumo exagerado com as ferramentas de mídia disponíveis atualmente fez do homem um escravo de suas escolhas e atividades. É quase impossível ser feliz, porque sempre se pode ser “mais feliz”. Basta comprar aquele vestido novo, trocar de carro todo ano, tirar férias naquele lugar bacana, frequentar aquele restaurante, ser visto com aquela pessoa ou simplesmente ter 10 mil seguidores no Twitter.
A indústria automobilística adaptou-se rapidamente ao novo mundo conectado. Carros que custam a partir de R$ 40 mil costumam sair de fábrica com conexão para smartphone, entrada USB, navegador por GPS, streaming de música e até programas de computador que desafiam o motorista a dirigir de forma mais ecológica, consumindo menos combustível.
O excesso de automóveis cria o caos nas grandes cidades nos momentos de grande pico no trânsito. Mas não há problema que emperre o mecanismo que faz girar a engrenagem da modernidade líquida. Foi daí que surgiu um aplicativo quase obrigatório hoje para todos os motoristas das metrópoles: o Waze. Além de ser grátis, esse aplicativo, facilmente instalável em um smartphone, sugere as melhores rotas, com menor tráfego, e prevê o tempo de viagem no percurso. Tão bom que foi comprado pelo Google, que já tinha o Google Maps.
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Como detectou Bauman, na sociedade de consumidores as pessoas não são fiéis a nenhuma marca ou produto. Nem mesmo às suas famílias, observam outros filósofos. Na modernidade líquida, fica-se com um produto ou com uma pessoa enquanto a outra parte está sendo útil, caso contrário descarta-se aquilo que se tem em mãos e busca-se uma alternativa mais “útil”. Portanto por mais que a indústria automobilística seja o motor do sistema capitalista, ela também está terrivelmente ameaçada.
As montadoras estão totalmente dependentes dos sistemas eletrônicos de uma Bosch, uma Denso ou uma Continental, por exemplo. Num cenário em que os jovens estão cada vez menos interessados em carros, sua parceria com empresas de tecnologia eletrônica, como Google e Apple, pode ser a saída da indústria do automóvel para chegar ao futuro tão robusta como hoje.