Se colocarmos na ponta do lápis a relação custo-benefício, o Chevrolet Cruze pode ser uma compra mais atraente do que o Honda Civic e o Toyota Corolla. No mínimo, ele tem o mesmo nível de competitividade que a dupla japonesa no mercado brasileiro. Entretanto, o carro estadunidense fabricado na Argentina não empolga os brasileiros.
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Mesmo somando as vendas dos modelos hatch e sedã, o Chevrolet Cruze ocupa uma discretíssima 33ª posição no ranking geral de vendas (considerando os comerciais leves). Pior: seu total de vendas corresponde a apenas 10,6% do volume conseguido pelo carro mais vendido do Brasil (por coincidência, também da GM, o Chevrolet Onix).
Por que isso acontece? Para saber, primeiro precisamos investigar qual é o comportamento do carro em outros mercados. Na Argentina, onde é fabricado, o Cruze também está em uma posição discreta (21º lugar), mas seu volume de vendas em relação ao líder (Toyota Hilux) é de 42,5%. Além disso, o carro mais vendido de sua categoria, o Toyota Corolla, não está muito acima (ocupa o 19º lugar, com números parecidos). Como comparação, no Brasil o Corolla está em 11º lugar e sua venda corresponde a bons 30,9% do volume do líder.
Já nos EUA, o Chevrolet Cruze precisa ser analisado de duas maneiras, devido às particularidades do mercado. No ranking geral, o Cruze ocupa o 29º lugar com vendas equivalentes a 17,4% do volume do líder. Porém, o mercado estadunidense tem o fenômeno das picapes, de forma que só os três líderes de vendas (Ford F-Series, Chevrolet Silverado e RAM Pick-up) vendem quase 2 milhões de unidades/ano. Assim, o correto é analisar o Cruze em relação ao primeiro carro “normal” que aparece no ranking, o Nissan Rogue. Em relação a ele, o Cruze vende 37,7%.
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No Brasil, poderíamos considerar que as baixas vendas do Cruze são decorrência do gosto do brasileiro pelos SUVs. Em parte, isso é verdade, mas essa tendência existe também em outros mercados. Então, identifico três razões: 1) o conservadorismo do consumidor brasileiro, que prefere comprar um Corolla defasado do que qualquer outro sedã médio atualizado; 2) o alto preço cobrado pelas montadoras em seus hatches médios, o que faz o Cruze ser líder em relação a VW Golf e Ford Focus, mas vendendo apenas 463 carros/mês; 3) o reposicionamento da marca Chevrolet.
Como as duas primeiras razões já foram analisadas em outros artigos, vou me concentrar na terceira: a mudança da Chevrolet no Brasil, de marca aspiracional para marca popular. Esse movimento aconteceu na virada do século XX para o século XXI e podemos afirmar com segurança que a General Motors (por extensão, sua marca Chevrolet) foi a montadora que mais mudou sua estratégia de negócios em relação ao final do século passado.
Você viu?
Desde 1968, quando lançou o Chevrolet Opala no Brasil, a GM construiu uma imagem de fabricante de carros superiores. Os sedãs da Chevrolet marcaram época. O Opala se transformou em um mito e tem muitos fãs no Brasil. Até mesmo o pequeno Chevette (lançado no início dos anos 1970) teve seu carisma dentro da linha Chevrolet – sua configuração de motor dianteiro com tração traseira resultava em uma dirigibilidade agradável.
Depois disso, nos anos 1980, a GM lançou o Chevrolet Monza. Quando chegou o Monza três-volumes, ele logo se tornou referência de sedã médio confiável, confortável e bem-acabado. A saga continuou em alto estilo nos anos 1990 com a chegada do Omega – talvez o melhor Chevrolet já produzido no Brasil – impondo um alto padrão de qualidade para os carros brasileiros. O século XX também veria a GM substituir o Monza pelo Vectra e melhorar ainda mais sua fama de fabricante de ótimos sedãs.
A nova Chevrolet do século XXI
Tudo mudou quando a GM decidiu ser uma montadora de carros populares. Os bons sedãs foram abandonados e toda a atenção foi dada à fabricação de carros baratos na fabricação e acessíveis para o público. O Chevrolet Celta foi o ícone dessa fase. Mas, ao contrário do Corsa, não trouxe nenhuma inovação ao mercado – pelo contrário, foi um passo atrás em vários aspectos, principalmente na ergonomia.
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Depois disso, a GM lançou o Prisma como versão três-volumes do Chevrolet Celta e manteve durante anos o Corsa Sedan em produção, mudando seu nome para Chevrolet Classic quando o carro estava totalmente defasado. Algumas boas peças publicitárias foram feitas para esses carros, mas a GM estava destruindo a boa imagem que tinha deixado na fabricação de sedãs.
Para piorar, o Astra foi rebatizado de Chevrolet Vectra quando já tinha parado de ser fabricado pela Opel na Europa. Nessa mesma toada, a GM perdeu status na primeira década do século XXI, mas soube se reinventar e passou a produzir novamente veículos de alto valor agregado para o público brasileiro.
Foi assim que surgiram o Onix, o novo Prisma baseado no Onix, o Cobalt e o Spin. O Cruze estreou na linha substituindo o Chevrolet Vectra -Astra (ou Astra-Vectra) e já significou uma melhora de qualidade no segmento de carros médios, mas havia muita coisa a ser feita – e o foco da GM, acertadamente, foi o Onix. Durante todo esse tempo, os sedãs japoneses (especialmente o Toyota Corolla) foi criando uma história de confiança com o consumidor brasileiro, aquela mesma que a GM tinha nas últimas décadas do século XX.
Hoje o Chevrolet Cruze é um carro injustiçado, pois tem mais qualidades do que suas vendas sugerem. É um automóvel que eu compraria de olhos fechados. Porém, a GM paga o preço de ter abandonado os clientes de sedãs superiores durante uma década inteira. E, como já escreveu Saint-Exupéry (aviador francês que criou a história do Pequeno Príncipe), “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.