“Não há que ser forte, há que ser flexível”, já dizia um antigo provérbio chinês, muito usado por praticantes de artes marciais. Sabedoria milenar é o que não falta aos chineses, e pode ter certeza que ela será aplicada às suas ambições de participar cada vez mais ativamente do setor automotivo.
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Portanto, não espere que as marcas chinesas vão correr atrás de um passivo de quase um século em relação aos tradicionais fabricantes americanos e europeus. Muito menos ter a paciência dos japoneses e coreanos, que precisaram de décadas para ser respeitados no cenário global, mas já foram motivo de desconfiança e chacota nos mercados mais tradicionais, inclusive no Brasil, onde muita gente chega a torcer o nariz para carro chinês .
Os chineses sabem que estão ingressando numa indústria que está passando pelas modificações mais radicais de sua existência. Elas querem surfar na onda dessas novidades, e não tentar chegar onde outros já chegaram há tanto tempo.
Melhor exemplo disso é o que vem fazendo a Geely. Já ouviu falar dela? Ela esteve no mercado brasileiro recentemente, representada pelo Grupo Gandini, o mesmo que importa a coreana Kia Motors. Porém, ela mal chegou e foi logo sepultada pelo super-IPI de 30% para os importados. Vendeu apenas 1.300 carros por aqui.
Se não ouviu falar da Geely, já ouviu muito falar da sueca Volvo. Pois saiba que a Geely é dona da Volvo desde 2010. E talvez venha a ouvir falar da LYNK & CO em breve. Essa nova divisão da Geely, apresentada no ano passado na Europa (em breve nos Estados Unidos), não tem nome de marca chinesa, e essa é justamente a ideia: se tantos equipamentos eletrônicos de ponta são feitos na China com nomes ocidentais, por que não fazer o mesmo com os carros?
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Sabe qual é o nome do primeiro produto da LYNK & CO? Trata-se do 01. Simples assim. Qualquer semelhança com a lógica de números nos aparelhos iPhone, Galaxy e afins não é mera coincidência. O 01 é um crossover feito sobre aquitetura da Volvo. Traz design escandinavo, o famoso pacote de segurança da marca sueca e conjunto mecânico da Volvo, tudo isso embalado num visual mais futurista e com ampla oferta de itens hi-tech. Em resumo, um carro sueco na essência, mas feito na China, com custos de produção mais baixos. Fruto de estudos de 1.700 técnicos suecos e chineses, que trabalharam secretamente no projeto por seis anos na sede da Volvo, em Gotemburgo.
Mas o mais impressionante ainda está por vir: a ideia da empresa não é vender carros, mas romper com o paradigma da propriedade. O plano é vender uma assinatura do carro, como se fosse um canal a cabo, um serviço de internet, um Netflix. O interessado poderá fazer um contrato pelo período que desejar. Horas, dias, meses ou anos. Poderá fazer tudo online ou em lojas-butique.
Esqueça impostos, manutenção, oficinas, burocracia. A empresa cuidará de tudo isso, e você nunca ficará sem carro dentro do período de assinatura. Poderá ainda compartilhar o carro por meio de um aplicativo, como se fora sua propriedade (a inspiração no serviço Airbnb é explícita no site da LYNK & CO). Por exemplo, enquanto estiver no trabalho. Basta marcar o horário de saída e seu 01 estará de volta onde deixou, depois de ser usado ao longo do dia por outras pessoas. Isso reduzirá o custo da sua assinatura.
Não pense que esse caso é único na indústria chinesa. Marcas que você nunca ouviu falar desenvolvem carros elétricos e/ou autônomos para competir com a Tesla: Faraday Future, Lucid Motors, Karma Motors e NIO são alguns exemplos.
Carros baratinhos e de qualidade duvidosa como os primeiros chineses que surgiram por aqui? Esqueça, esse não é mais o foco dos chineses para o mercado global. Eles querem o segmento premium e principalmente o modelo de negócio que vai reger o mercado automotivo a partir da próxima década.
Parcerias e aquisições para saltar etapas
Claramente os carros caminham a passos largos para virar commodities (com pouca diferença entre si). É por isso que as empresas chinesas, quase todas nascidas na virada do século, vão se especializar na arte de oferecer serviços de mobilidade. Para que desenvolver carros, se os projetos podem ser adquiridos? A Geely comprou a Volvo há sete anos. A Dongfeng é uma das principais acionistas da francesa PSA Peugeot-Citroën desde 2014 (e agora, por tabela, da alemã Opel). Rumores dão conta de que há grande interesse da chinesa GAC na aquisição do Grupo FCA, que detém as marcas Fiat, Jeep, Alfa Romeo, Dodge, Chrysler, entre outras. Os grupos já são sócios em fábricas na China.
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Se as montadoras ocidentais fazem parcerias com empresas do Vale do Silício para pensar nos carros do futuro, os chineses já estão colocando isso em prática. A BYD é uma empresa de baterias de íon-lítio que resolveu também fazer automóveis, e hoje está no Top 100 das empresas de alta tecnologia. As estatais Chery e JAC certamente têm seus planos de expansão secretos que vão muito além da rápida evolução de seus produtos.
Flexibilidade em vez de força. Essa é a receita das marcas chinesas para repetir nas próximas décadas o sucesso que Bruce Lee fez nos anos 70, popularizando o kung fu em escala global. Se as marcas tradicionais não repensarem seus modelos de negócio, vão sentir o golpe dos novos dragões orientais. Você ainda vai ter um carro chinês, e talvez nem perceba.